CORDEL VIVO


    Literatura de Cordel continua viva no Brasil


Afinal, a chamada literatura de cordel, no Brasil, não morreu; está completando cerca de cem anos bem vividos. Esse gênero de poesia popular impressa, que ocorre especialmente no nordeste, passou a ser valorizado por brasileiros depois de um artigo de Orígenes Lessa na revista Anhembi, publicado em dezembro de 1955, e talvez principalmente depois de outro artigo, do estudioso francês Raymond Cantel, publicado no Le Monde de 21 de junho de 1969. A partir de inícios da década de 70, o assunto virou coqueluche para estudiosos brasileiros, formando-se considerável bibliografia em que se incluem teses e mais teses. Também muitos artigos foram publicados, inclusive de interessados de última hora que se precipitaram em afirmar, de pés juntos, o fim do cordel. Vinte anos depois, podemos observar que — a despeito de estar implícito no dinamismo sócio-cultural o possível desaparecimento de traços folclóricos — o cordel continua vivinho da silva. Até virou souvenir para paulistas, cariocas, mineiros, gaúchos em passeio por feiras nordestinas ou em centros de turismo como o Pátio de São Pedro (Recife), a Emcetur (Fortaleza), o Mercado Modelo (Salvador) e outros locais. O estudioso Joseph M. Luyten calcula em 100 mil títulos editados, o que é apenas uma estimativa. Quanto ao total de exemplares, quem pode saber ao certo?

Além da previsão apressada da morte dos livretos populares, o interesse repentino e a falta de embasamento e pesquisa levou à mudança de nome do fato. Vejamos: no contexto popular onde os livretos são criados, vendidos e lidos, o nome anterior e ainda vigente é "folheto" ou "folheto de trovador" (com 8 páginas, cerca de 11x16cm), pois seus autores sempre se auto-denominaram trovadores. Ou então "romance", "história" quando a narrativa é mais longa e exige 16, 32 ou mais páginas. A denominação cordel tem origem erudita, influência de Portugal, e acabou chegando ao vocabulário dos autores populares. Criou-se também este ou aquele neologismo, como "cordelista" e "cordelismo", que estão longe do padrão terminológico popular.

Início e continuidade

Por falar em Portugal: como tantos outros fatos culturais brasileiros, essa literatura popular tem parentes entre os lusos. Mas está ligada também a cantorias e a desafios acompanhados de viola. Parece que os primeiros folhetos de trovador, no Brasil, foram impressos no final do século XIX. Leandro Gomes de Barros e João Martins de Atahyde são dois dentre os primeiros poetas; livrinhos de sua autoria continuam sendo reeditados, com direitos vendidos e revendidos. As tiragens totais acabam sendo difíceis de serem contabilizadas, calculando-se em milhares e milhares de exemplares. São famosos títulos como O cachorro dos mortos, Juvenal e o dragão, História da donzela Teodora, e outros de Leandro Gomes de Barros (Pombal-PB, 1865; Recife-PE, 1918); também Casamento e mortalha no céu se talha, História da princesa da Pedra Fina, Batalha de Oliveiros com Ferrabraz, Como se amança uma sogra, Rolando no Leão de Ouro, Os sofrimentos de Alzira, estes de João Martins de Atahyde (Ingá-PB, 1880; Recife-PE, 1959), e mais outros de autores falecidos, como José Bernardo da Silva, José Camelo de Melo Resende, Severino Milanês da Silva, Francisco das Chagas Batista, José Soares, Joaquim Batista de Sena, Rodolfo Coelho Cavalcante e outros. Dentre os que continuam produzindo, podemos citar Abraão Batista, em Juazeiro do Norte-CE; Minelvino Francisco Silva, em Itabuna-BA; o pernambucano João de Barros que reside em São Paulo; o paraibano Raimundo Santa Helena que reside no Rio de Janeiro; outro pernambucano fabuloso que é José Cavalcante e Ferreira, que também assina José Ferreira da Silva ou apenas Dila; J. Borges, em Bezerros-PE; Adalto Alcântara Monteiro, em Santa Maria do Pará-PA; e muitos outros.

Comparações

Essa literatura popular impressa existiu em diversos países, como a França até o século XIX, também Portugal e Espanha até as primeiras décadas do século XX. Há exemplares de volantes recuados no tempo, século XV. Mas nos anos setecentos e oitocentos, os "Colportage" e os "Canards" franceses alcançaram grandes tiragens; a ponto de existirem coleções numerosas, felizmente conservadas, como a "Bibliothèque Bleue". Houve mesmo um segmento profissional que se dedicava à edição dos folhetos franceses, em Troye, Avignon, Lyon, Paris, Bordeaux, Lille, Nantes, Rouen, Toulouse; também em Madri, Barcelona, Lisboa, Porto, etc. Na Espanha, a Biblioteca Nacional dispõe de grande coleção. Em Lisboa, a Fundação Calouste Gulbenkian adquiriu, de particular, uma pequena porém significativa coleção. No Rio de Janeiro, a Fundação Casa de Rui Barbosa possui uma das maiores coleções brasileiras.

É no Brasil que essa produção popular persiste com aceitação de seu público original, apesar de novos entretenimentos, como rádio e televisão. E tendo conquistado aquele outro público, de estudiosos, colecionadores eruditos, turistas.

Se tentarmos alguma comparação dessa literatura abrangendo material dos quatro países, podemos chegar a contrastes interessantes.

No Brasil, prevalece a forma poética à prosa, preferentemente em redondilha maior (versos de sete sílabas contadas até a última tônica) e seis "pés" (versos), portanto a sextilha. As rimas ocorrem no segundo, quarto e sexto pés: ABCBDB.

O Reino do Barro Branco 
é defronte uma colina 
cortada por quatro rios 
de água potável e fina 
fica nos confins da Ásia 
bem perto da Palestina.

Severino Milanês da Silva, O Príncipe do 
Barro Branco e a Princesa do Vai Não Torna.

Nos demais países, é grande a presença do texto em prosa.

Os temas permitem várias classificações, como já foi feito por estudiosos brasileiros, americanos e europeus, desde narrativas tradicionais transmitidas oralmente e que passaram à mídia escrita, como é o caso da donzela Teodora, do cavaleiro Roldão no ciclo carolíngeo, da princesa da Pedra Fina, do dragão de sete cabeças, dos Contes de Fées, do romance de aventuras Andrionico y el león, ou a novela Desengaños Amorosos (esta de l647), até ficção sobre temas de amor, humor, aventura, sem esquecermos o chamado cordel circunstancial, que é o folheto de caráter jornalístico ou "folheto de época": refere-se a um fato acontecido e o relata destacando aspectos importantes e até exagerando no sensacionalismo. Os exemplos são inúmeros, mostrando como o ser humano está frequentemente ávido por novidades, por notícias atuais:: Os posseiros do Maranhão, de Ary Fausto Maia; A renúncia do ex-presidente Dr. Jânio Quadros, de Rodolfo Coelho Cavalcante; O choro de Itabuna depois da enchente, de Minelvino Francisco Silva; Pelé na Copa do Mundo e o Brasil tri-campeão, de Severino Amorim Ferreira; Saída do presidente Médici e posse do novo presidente Ernesto Geisel, de Cunha Neto; É a gasolina subindo e o povo passando fome, de António Lucena de Mossoró; A tragédia da Belém-Brazília (não assinado); O plano Collor em ação muda a face da nação, de Adalto Alcântara Monteiro; Debates de guerra entre Bruxe e Sadam Russem, de Abraão Batista. Na década de 70, quando a mini-saia revolucionou o guarda-roupa feminino, o trovador Minelvino Francisco Silva lançou A moda da mini-saia e a garota braza viva. Por essa época, o já citado Rodolfo Coelho Cavalcante lançou A moça que mordeu o travesseiro pensando que era Roberto Carlos - que, dá para percebermos — é a estória alegre de um sonho perturbador....

Na França, parece que o sensacionalismo foi muito marcante: Détails sur deux assassinats; Malheureueses innondations; Détails sur la mort tragique de la fille de M. Delatour; Horrible assassinat suivi de viol; Terrible naufrage; Innondation dans les Départaments / Détails des cruels désastres survenus à Orléans; Oraison funèbre de Napoleón Bonaparte; Dernières paroles de sa majesté Louis XVIII.

Nesta modalidade jornalística ou de atualidade, os folhetos brasileiros podem ser agrupados em ciclos temáticos, como os do Cangaço e especialmente de Lampião, também do padre Cícero, do suicídio de Getúlio Vargas, das visitas do papa, do fracassado governo Collor de Melo, etc. Na França, Napoleão constitui um ciclo evidente, crimes constituem outro. Esse tratamento da atualidade contrapõe-se às criações inspiradas em temas tradicionais, como João de Calais, Carlos Magno e seus Pares, donzela Teodora, Branca de Neve e tantos outros. Em Portugal, no começo do século XX foram também usuais edições sobre cançonetas, refletindo o gosto pelo teatro de variedades, da época.

Ilustrações

As capas dos folhetos têm somente dizeres chamativos ou também ilustração. Quando a ilustração se acha presente, é comum basear-se em xilogravura, porém pode ser desenho e clichê de zinco e, no caso do pernambucano Dila, a gravura em borracha, adotada no final da década de 80.

O citado "Canard" de grande formato sobre a oração fúnebre de Napoleão Bonaparte, datado de 1821, tem ilustração mostrando uma cena de velório, com Napoleão morto cercado por um sacerdote, uma mulher e dois oficiais; tudo adornado por um cortinado, à guisa de dossel da gravura. Mas em outras obras, como as marcadas por título que se inicia com Détails..., as cenas não raro mostram uma pessoa degolando, esfaqueando, enfim matando cruelmente a vítima. No Brasil, na Espanha e em Portugal parece menos frequente essa visualidade do crime. Mas não escapam do insólito: Grande e horrível crime de uma mulher que matou seu próprio marido com uma faca de cozinha é um exemplo português, não único.

Por outro lado, há diversos folhetos portugueses da década de 50 que mostram desenhos coloridos na capa, quer dizer, aplicando-se modernas técnicas gráficas; outros, do final do século XIX, têm desenhos em branco-e-preto — o que era mais comum, nos quatro países. Entre os brasileiros, além de edições feitas na região nordestina, geralmente em branco-e-preto e de modo artesanal, existem atualmente edições ou reedições feitas em São Paulo e Rio de Janeiro, com alguma sofisticação gráfica e capas em cores.

Ficção humorística

Ocorre ainda a presença da jocosidade, em textos abertamente humorísticos ou em textos irônicos, ou ainda na exploração de boatos (que o autor popular logo capta e utiliza para sua criatividade). Alguns títulos ajudam a compreensão desse grande número de folhetos, cá e lá: Piadas de Bocage, de António Teodoro dos Santos; O grande debate de Camões com um sábio, de Arlindo Pinto de Souza; As perguntas do rei e as respostas de Camões, de Severino Gonçalves de Oliveira; Disparates em verso, de Armando Barata e Artur do Intendente; A padeira de Aljubarrota, de J. A. d’Oliveira Mascarenhas (estes dois de Portugal).

Mas a lista seria interminável: O homem que casou com a jumenta, de Olegário Fernandes da Silva; A mulher que engoliu um par de tamancos com ciúme do marido, de José Costa Leite; História do macaco que quis se virar gente, de Minelvino Francisco Silva; O rapaz que casou com uma porca no estado de Alagoas, de José Soares; O rapaz que virou burro em Minas Gerais, de Rodolfo Coelho Cavalcante; História da razão dos cachorros cherarem o feofó uns dos outros, de Abraão Batista; e também História de um galego que trocou a mulher por uma vaca (sem assinatura, editado em Lisboa).

Se para uma pessoa de cultura urbana do Rio de Janeiro, de São Paulo ou de outras cidades progressistas do Sul-Sudeste títulos assim podem parecer exotismo demais, e portanto levar até a desprezo, nem sempre isso se confirma. Quando Rodolfo escreveu A moça que bateu na mãe e virou cachorra (mais de 20 edições), com várias gravuras de uma figura com corpo de cadela e cabeça de moça, não estava brincando: é o relato sério de um "causo" acontecido. Dizem. Como acontecido foi, ou assim tratado, o fato que motivou O papa-fígado de criança que apareceu em Minas Gerais, de Minelvino Francisco Silva. Da realidade ao fantástico é um pulo, o que explica o êxito de textos que seguem a linha de O homem que virou bode, versos e capa personalística de Dila.

Do santo ao diabo

Ora, esse enfoque do grotesco envolvendo seres humanos e animais excepcionais, monstros, seres fantásticos parece habitar o imaginário dos autores dos quatro países aqui tratados (e de outros mais); afinal, do imaginário dos povos. Como podemos verificar pelo volante francês Le grand terrorifer d’Afrique, ou o Recit veritable, touchant le monstre espouventable & extremement horrible, nommé le Canesque, ou le Dragon Marin du Fare de Messine (de 1649); e, em Portugal, a Relação verdadeira da espantosa Féra... (que assustava habitantes de Chaves em l760).

Os trovadores contemporâneos brasileiros não deixam por menos: O estudante que se vendeu ao diabo; o tantas vezes reeditado Peleja de Riachão com o Diabo, ambos de João Martins de Atahyde, A moça que o diabo tomou conta para a matar de fome, de Abraão Batista; muitas preocupações do ser humano face ao sobrenatural, como refletido está em Jesus e o Diabo, versos e xilogravura de Dila. Ou ainda encontros de pessoas famosas no céu ou no inferno, como o cangaceiro Lampião que chega ao inferno e logo se põe a discutir com Satanás. E não é só ele: há o Encontro do presidente Tancredo com o presidente Getúlio Vargas no céu, de Manoel d‘Almeida Filho; Lampião e Maria Bonita no Paraizo do Édem, tentados por Satanás, de João de Barros. Parece que, no Brasil, esses encontros, as pelejas, as narrativas de encantamento, os folhetos "de época" e outros vão continuar, embora nos demais países — aí sim — o cordel morreu ou está moribundo.

Referências bibliográficas:

BONNEFOY, Claude. La littérature de colportage; Flammes et Fumées, Paris, 1971. 
LOPES, Ribamar (org.). Literatura de cordel — Antologia. 2.ed., Fortaleza, Ministério do Interior/Banco do Brasil, 1983. 
LUYTEN, Joseph M. A ilustração na literatura de cordel; Comunicações e Artes (8), Escola de Comunicações e Artes, S.Paulo, 1979. 
LUYTEN, Joseph M. Para Ti Para Todos (7), Fund. VZW Jangada, Antuérpia, junho-1996 (ed. bilíngue português/holandês, monotemática, com diversos estudos). 
MARTHA, M. Cardoso. Gravura popular portuguesa; Terra Portuguesa 1(12), Lisboa, janeiro-1917. 
MELO, Veríssimo de. Tancredo Neves na literatura de cordel. Belo Horizonte, Itatiaia, 1986. 
SEGUIN, Jean-Pierre. Nouvelles à sensation - Canards du XIXe siècle. Paris, Armand Colin, 1959. 
SEGUIN, Jean-Pierre. Physiologie du canard. Paris, Flammes et Fumées, 1965.