João Batista de Siqueira (Cancão)
MANHÃ DE CHUVA
As andorinhas no rio Passam baixinho voando Como crianças brincando Num lago vasto e sombrio O mangueiral do baixio Sente a chuva, estende a rama No chão, a verdosa grama Se serve do mesmo orvalho Que o vento, agitando o galho A folha treme e derrama
Do sopé da cordilheira As pequeninas correntes Se despenham diligentes Em busca da cachoeira O xexéu, na aroeira Olha toda a redondeza Diante tanta beleza Se sente todo encantado Pensa ser o namorado Mais fiel da Natureza
Dentro do bosque cerrado A vegetação cochila Levanta a fronde tranqüila Sentindo o tronco lavado Dentro do emaranhado Que à tarde a sombra rodeia A ema, lenta, passeia Em um constante arrepio Já enfadada do frio Que a mão da brisa semeia
Passa perto da palhoça Um boi em lentas passadas Fazendo as suas pisadas No balanço da carroça Vai a tabaroa à roça Em um ar aborrecido No caminho mais seguido Buscar água no regato Se defendendo do mato Pra não molhar seu vestido
Caminha o rebanho lento Do arvoredo vizinho À procura do caminho Do planalto lamacento No campestre friorento A planta alegre se agita A flor sorri e palpita Sentindo os ventos medonhos Lá dos recantos tristonhos Que o gênio da sombra habita
O vento passa maneiro Pelo campo rosciado Fingindo um céu esmaltado Coberto de nevoeiro Na baixada, o ingazeiro Sente vigor, se renova Como nos dando uma prova Se mostra todo florido Entre o multicolorido Dum mundo de rama nova.
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DIAS DE OUTONO
Surge a manhã radiante Com seu clarão luminoso No prado verde e relvoso Derrama luz cintilante No horizonte distante Seu lindo foco irradia A aragem branda e fria Passa por entre a ervança Grata, meiga, pura e mansa Fresca, serena e macia
Logo linda claridade Através do monte surge Muito triste a vaca muge Como quem sente saudade O sol, com vivacidade Nos anuncia um bom ano O seu disco soberano Faz o espaço vermelho Cristalizando o espelho Das águas do oceano
O vento atravessa certo Os altos cumes azuis Roçando os verdes bambus Do coração do deserto O sol, qual espelho aberto Envia luz luminosa Por trás da serra verdosa Começa o clarão surgir Parece o mundo se abrir Num sonho de paz e rosa
Os gigantes vegetais Na desabrida procela Soltam a folha amarela Pelos desertos campais Ouvimos, para os rosais Linda canção maviosa Na aroeira frondosa Um sabiá comovido Solta o prelúdio sentido De sua endecha chorosa
Canta contente o carão Na fronde do cajueiro Depois faz vôo ligeiro Pra longínqua região Grita alto o gavião Do sol gozando o afago Que do firmamento vago Envia pomos de luz Dourando as asas azuis Das borboletas do lago
As águas impetuosas Descem do monte barrentas Procurando, violentas As catadupas limosas O colibri, entre as rosas Voa com certo desvio Enquanto o vento macio Passa abraçando os barrancos Dos gratos terrenos brancos Da margem fresca do rio
As borboletas ligeiras Esvoaçam sem empalho Sorvendo as gotas de orvalho Das flores das goiabeiras Depois, voando rasteiras Vão procurar novas bases Para o tenebroso oásis Onde há mais esperando Uma à outra revelando As mais inocentes frases
O nevoeiro parado Fazendo negros bulcões Os mais pesados trovões Estalam de lado a lado No lindo pomar florado A aura espalha frieza Nos mostra sua beleza O pequeno ouricuri Recebendo, alegre em si Os beijos da Natureza
Doze horas, meio-dia A vento soluça manso O nevoeiro, em balanço Uma mudança anuncia A passarada em folia Gorjeia pela campina Se ouve, além da colina Rumores do vendaval Assim a tarde outonal Chuvosa e fria declina
As garças voam vexadas Dos desertos mais vizinhos Na direção de seus ninhos Perto das águas paradas A noite, além, nas chapadas Abre o manto universal E o nevoeiro em geral Mostra os últimos rubores Pelas derradeiras cores Do incêndio ocidental
As sombras, no mofumbal Frias e densas se enrolam As goteiras cantarolam Uma canção invernal Seis horas na catedral Momento grato e tocante A brisa mansa e cortante Passa por monte e sopé Enquanto um velho pajé Evoca seu gênio errante
O sol, por trás dos silvedos Espalha luz soberana Linda donzela indiana Olha, sorrindo, seus dedos, Ouvimos, para os penedos A catadupa gemendo As águas brandas descendo Pelas escabrosidades Pra nos trazer mais saudades Da tarde que vai morrendo
Agora, a escuridão Desenrola num levante Vem tomando, num instante O mundo, de vão a vão Uma grande solidão Neste momento aparece O globo todo entristece Reina um silêncio profundo A noite amortalha o mundo E a Natureza adormece...
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DEPOIS DA CHUVA
Era uma tarde de abril, A luz do sol se escoava Um traço da cor de anil O céu deserto mostrava Num lago triste e sereno Nadava um cisne pequeno Eriçando as alvas plumas As derradeiras neblinas Faziam lindas ondinas Por entre as brancas espumas
Um sabiá pesaroso Nos galhos em que nasceu Cantava, triste e choroso As mágoas do peito seu O sol além se deitava A sua luz se esvasava Pela ramagem da horta A brisa, em leves ruídos Levava os ternos gemidos Da tarde já quase morta
A água branda descia Pelo pequeno gramado A relva, fresca e macia, Era um tapete rendado Se ouvia, lá da colina, No coração da campina, Soluçar uma cascata E o sol, com seus lampejos, Dava os derradeiros beijos No rosto verde da mata
O sol, com luz amarela Dourava os morros azuis Tornando o céu uma bela Pulverização de luz A aura fresca e macia Por entre a mata fazia Os mais suaves rumores As borboletas douradas Se misturavam vexadas Bebendo o rócio das flores
As auras rumorejavam Com lentidão e leveza Os regatos retratavam Um lindo céu de turquesa Os orvalhos cristalinos Se desprendiam divinos Da copa dos arvoredos Nas carnaúbas rendadas Como com mãos espalmadas O sol brincava em seus dedos
Voavam pelos verdores Lindos colibris dourados Sugando o néctar das flores Dos jiquiris borrifados No pomar, um rouxinol Contemplava o arrebol Numa profunda tristeza Um traço débil de luz Rasgava os panos azuis Do corpo da Natureza
Depois, os ventos mansinhos Sopravam no campo vago Fazendo alguns burburinhos Na face lisa do lago As abelhas, preguiçosas, Se escondiam nas rosas Que a Natureza burila E o cisne de brancas penas Cortava as águas serenas Da superfície tranqüila.
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A CASA DO ÉBRIO
Era um casebre tristonho De cujas paredes tortas Vinha o rangido enfadonho Dos gonzos de duas portas As telhas já nodoadas Duas roletas deitadas Numa camarinha escura O vento, quando passava Parecia que falava Nas frinchas da fechadura
Na parede do nascente, Um banco desmantelado Um garrafão de aguardente Que ainda havia sobrado Junto ao quarto de dormida Cera que foi derretida Do resto de algumas velas No chão, marcas de escarros Cacos de vidro, cigarros Rolavam por cima delas
Uma rede remendada, Outra parte descosida Em um torno pendurada Pela fumaça tingida De um lado, havia um cambito Onde o couro de um cabrito Sobre um arame pendia Mais adiante, um jirau Junto à travessa de um pau Onde um morcego vivia
Uma corda, uma rodilha Bem acima de um caixão Um pote, numa forquilha Vazava junto ao fogão Um gato cego e doente Deitado sobre um batente Por certo sentia sono De fora, um jumento olhava O seu olhar revelava A malvadez de seu dono
Uma vara de ferrão, A banda de uma tigela Meio quilo de sabão Embrulhado dentro dela A banda de um cobertor Atada em um armador Onde havia um candeeiro Uma camisa de saco Mostrava por um buraco A tampa dum tabaqueiro
Uma cadeira quebrada As pernas de um tamborete Uma foice enferrujada Encabada num cacete Ao lado de uma cangalha Havia um chapéu de palha Com um remendo de pano Um tronco de mandioca E um anzol numa taboca Pra pesca do fim do ano
Havia armado um quixó Encostado a um baú Costurado com cipó Todo feito a couro cru Num recanto separado Se conservava embrulhado O braço de uma viola Zelava por tradição Que seu pai foi campeão De cantar pedindo esmola
Uma calça de azulão Perto da porta do meio A bainha de um facão Balançava em um esteio Numa mesinha na sala Havia cascas de bala Um bisaco e uma garrucha, A manga de um paletó E um galho de mororó Guardado pra tirar bucha
Cinco ovos de galinha, Um punhado de limão, Uma cuia com farinha Sobre a boca de um pilão Uma rolinha pelada Numa gaiola quebrada Junto à porta dormia Em frente, um cão cochilava Com certeza decorava Sua cruel profecia
Um pedaço de perneira, Um serrote e uma enxó Tudo dentro duma esteira Amarrada em um cipó Um candeeiro sem asa E num recanto da casa Quatro cartas de baralho Em um barbante, num prego Atado por um nó cego Estava preso um chocalho
A canela de um veado, Uma ponta de carneiro, Em um gibão amarrado Um facho de marmeleiro Em frente havia um baú Só feito de couro cru Bem apoiado no chão Sobre sua tampa aberta Mostrava uma prova certa Donde guardava o carvão
Abaixo de um travesseiro Um pouco de sola em dobra Dada por um curandeiro Pra mordedura de cobra Mais um cachimbo de barro Que o mau cheiro do sarro Chegava até o caminho Em um recanto, num banco Um sapato preto e branco Que recebeu de um padrinho
Muitas formigas pequenas Umas vinham, outras iam E assim muitas centenas Entre os torrões se escondiam Duas varas emendadas Numa parede pregadas Quase na forma dum ‘vê’ Se o vento passava, vinha Do terreiro ou da cozinha Um cheiro não sei de quê
Uma criança chorava Juntinho da mãe doente Que com esforço lhe olhava Mas já com ar diferente O rosto banhado em pranto, Deitada sobre um recanto Numa parede encostada A face triste e sombria Que durante aquele dia Não tinha comido nada
Depois, um homem barbado Entrava cambaleando Num andar lento e pesado Exasperado falando Um ferimento num braço Se ia aumentar o passo, Botava a mão na parede Sorria e depois chorava Pelos seus traços mostrava Sinais de quem tinha sede.
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SONHO DE SABIÁ
Um sabiá diligente Voou pela vastidão Mas por inexperiente Caiu em um alçapão Depois de aprisionado Ficou mais martirizado Pensando no seu filhinho Implume, sem alimento Exposto à chuva e ao vento Sem poder sair do ninho
Deram-lhe por seu abrigo Uma pequena gaiola No casebre de um mendigo Que só comia de esmola Só vivia cochilando Com certeza imaginando Sua liberdade santa Ia cantar, não podia Que sua voz se perdia Logo ao sair da garganta
Tornou-se a pena cinzenta Em seu profundo castigo Na saleta fumarenta Da casa do tal mendigo Sempre triste, arrepiado Nesse viver desolado Ia um mês, vinha outro mês Assim completou um ano Sentindo o seu desengano Nunca cantou uma vez
Depois, uma tarde inteira O pobre do passarinho Sonhou que ia à palmeira Onde tinha feito o ninho Olhava, em frente, as campinas Via por trás das colinas A Natureza sorrindo Ao sentir a liberdade Pensou ser realidade Sem saber cantou dormindo
Depois, sonhou que voltava À terra dos braunais Por onde sempre cantava Mais os outros sabiás Voava nas ribanceiras, Pousava nas laranjeiras Olhando o clarão do dia Voava através do monte, Voltava a beber na fonte Que todas manhãs bebia
No sonho via as favelas Criadas nos carrascais Voou, baixou, pousou nelas Cantou os seus madrigais Voltou, colheu os orvalhos Que gotejavam dos galhos Dos frondosos jiquiris Contente, abria a plumagem Pra receber a bafagem Das manhãs de seu país
Foi à terra dos palmares Atravessou toda a flora Voou por todos lugares Que tinha voado outrora Passou pelos mangueirais Entre os outros sabiás Cantou sonora canção O seu som melodioso Estava mais pesaroso Devido à sua emoção
Viu a vinda do inverno Nos quadrantes da paisagem Ouviu o sussurro terno Do bulício da folhagem Cantou todo o arrebol, O brilho morno do sol Morrendo nos altos cumes Sentia, quando cantava Que seu coração chorava Com mais tristeza e queixumes
Sonhou catando semente Num campo vasto e risonho Se sentia tão contente Que sonhou que fosse um sonho Olhava pra vastidão Tocava em seu coração Um regozijo profundo Todas delícias sentia Às vezes lhe parecia Vivendo fora do mundo
Voou por entre os verdores, Atravessou as searas, Cantou pelos resplendores Das manhãs frescas e claras Passou pelo campo vago, Bebeu das águas do lago, Pousou sobre o arvoredo, Penetrou no bosque escuro, Aí sonhou um futuro Tão triste que teve medo
Depois, sonhou que estava Trancado em uma gaiola Ouvindo alguém que cantava Na porta, pedindo esmola Ao despertar de momento Reparou seu aposento, Ouviu falar o mendigo Fechou os olhos pensando Sentiu seu íntimo chorando No rigor de seu castigo
Ainda em vão procurava Sair daquela prisão Seu olhar denunciava Piedade e compaixão Ao pensar na liberdade A mais pungente saudade Devorava o peito seu Assim, o cantor da mata Ferido da sorte ingrata No outro dia morreu.
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SAUDADES DA MINHA TERRA
Lembro as palmeiras copadas Daquela terra querida O prado, a veiga nevada Das manhãs da minha vida As florestas circundantes, As fontezinhas cantantes Que descem dos tabuleiros Os ventos que à tarde vão Passam quebrando a canção Chorosa dos boiadeiros
O bosque, o vale, a devesa Meus belos campos natais Parece que a Natureza Não quer que os veja mais O canto do rouxinol Na hora em que o arrebol É mais suave e brilhante As manhãs subdouradas De brancas nuvens franjadas Do lindo sol do levante
O odor das flores mimosas Criadas nas cordilheiras Passa nas mãos carinhosas Das brisas madrugadeiras Aquele céu desmaiado, Ligeiramente azulado, Prende, domina, encanta Um véu sereno de neve Baixa, cobrindo de leve, A copa verde da planta
O braunal lá do cume Se estende num vago açoite Quando o sol rasga o negrume Do cortinado da noite A marreca, a jaçanã, Tudo saúda a manhã Diante o formoso encanto O sabiá da campina Canta a primeira matina Do matutinário santo
Oh, felizes serenadas Meu lindo céu de safira Montanhas alcantiladas Por onde a brisa suspira Monte, vale, veiga, flora Belos recantos que a aurora Serenamente irradia Onde os ventos sertanejos Dão os primeiros bafejos No rosto alegre do dia
Nas montanhas esfumadas O sol se esconde sutil Por trás das nuvens douradas Do céu sereno de abril As estrelas fulgurantes Aparecem, tremulantes Entre camadas de véu Surge o luar purpurino, Espelho sacro e divino Das namoradas do céu.
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O INCÊNDIO
Sobe ao lado direito da ladeira Turbilhão de fumaça espiralada A labareda se eleva acompanhada Do estalo ruidoso da madeira
Animais se dispersam na carreira No bafo sufocante da queimada Passa a ave piando embaraçada Da quentura que atinge a mata inteira
Lavas cruzam, volteiam, se embaralham Se misturam, mergulham, se esbandalham Numa fúria de demônios poderosos
Já tudo devastado, apenas brilha O braseiro, que ainda se enrodilha Crepitando nos troncos resinosos
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ABANDONO
Não quero mais o teu amor, perjura Não me seduzas, coração fingido Repara, vê como eu estou ferido Por teu sorriso de voraz ternura
És como a cobra ao sentir bravura Das criaturas que já tem mordido Em teu espírito há um mal contido Pra teu veneno não existe cura
Foge pra longe com os teus encantos Enxuga noutro teus malditos prantos Não me atormente com teus falsos ‘ais’
Esquece os tempos que jamais revivem Deixa eu viver como as aves vivem Por minha vida não pergunte mais
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O SERTÃO
Sertão rude das secas causticantes Esfumadas montanhas comburidas As pessoas, com fome, perseguidas, Se afastam de ti como emigrantes
Aventureiras, pedestres, viandantes Muitas vezes demais desprotegidas Mesmo algumas que são favorecidas Sentem algo viverem tão distantes
E um dia, movidas de saudade Deixam pão, deixam lar, felicidade Em regresso, buscando seu torrão
Como a ave que foge da gaiola Voa, canta, porém só se consola Quando volta de novo pra prisão
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CREPÚSCULO
O céu se abre num leque de rubor A luz solar cristaliza o panorama Se escoa e tremula sobre a rama Tornando toda a pelúcia multicor
Os horizontes circulam de outra cor A penumbra parece arder em chama A última luz no ocaso se derrama Num quadro mágico, sublime, encantador
O sol, guerreiro que veio do Oriente Passou o dia lutando ferozmente Da guerra trouxe seu golpe assinalado
Agoniza agora, e através da tela infinda Pela grimpa da serra mostra ainda A metade do rosto ensangüentado.
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A NOITE
As fontes serpeiam, as águas que jorram Nos vales esborram, os montes respondem Nos nenúfares algumas crisálidas Nas horas mais pálidas as folhas escondem
O pirilampo que vem do tapume Procura o perfume da flor mais distante Piscando diante de um traço da Lua Que alto flutua no quarto-minguante
Gemem os ventos nos vastos penedos Murmuram segredos em beijos de açoite Em todos sentidos as lindas falenas Se cobrem nas penas da asa da noite
Suspiram as brisas na boca da serra Abanam a terra sombria e gelada As plantas se curvam ao peso do sono Diante o carbono da noite enlutada
Noite de sonhos, visões hediondas De nuvens redondas que o vento desfaz Abrem-se os lírios num santo costume Que são o perfume das noites campais
As auras soluçam nas árvores virentes De estrelas cadentes o céu se reveste O globo parece que treme e desmaia Oculto na saia da noite que veste
A neve desdobra no vasto baixio Seu ramo macio coberto de véu Brilham serenas estrelas polares Em longes lugares de um lado do céu
Existem receios em todos recantos Sustos, espantos, daqui para ali A noite, rainha de sonho e fantasma Se olha e pasma com medo de si
Mãe dos impuros, ladrões, assassinos Dos crimes ferinos, assaltos profundos Oculta os maus no negro sudário O mais necessário pra mais de cem mundos.
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SONHO DE UM POETA
Dormi, dormi na velhice Sonhei que era pequeno Senti o zéfiro brando Soprar, suave e sereno Aromatizando as plagas Do meu sagrado terreno
Ausente do meu torrão Grande saudade me encerra Na grata imaginação Lá da palhoça da serra Dormindo, o sonho levou-me Aos campos de minha terra
Minha terra tem palmeiras Tem bosques, carnaubais Tem vales, tem serranias Gigantescos laranjais Outra terra como a minha Eu sei que não vejo mais
O vento da minha terra Eu acho mais perfumado O sol é mais luminoso O céu é mais estrelado As noites são mais serenas O mundo, mais descampado
Por sonho via os verdores Daquela terra querida A brisa soprava lenta Dentro da veiga florida Quebrando o grande silêncio Da floresta adormecida
As brisas nos mangueirais Perpassavam com meiguice Onde meus pais descansavam Das fadigas da velhice Olhando eu colher as flores Cheirosas da meninice
Olhava as lindas chapadas Onde cantava o xexéu Lugares onde eu brincava Descuidado, sem chapéu Correndo à margem dos lagos Olhando as sombras do céu
Por sonho via os coqueiros De monstruosos tamanhos Ouvia a voz dos pastores Admirava os rebanhos Via os lagos em que eu Tomei os primeiros banhos
Via os verdejantes bosques As esplanadas mais belas Pareciam um mar de luz Os rosais, as caravelas As aves, as mariantes Que viviam dentro delas
A mata densa e florida Se estendia divina Os orvalhos tremulavam Porque o véu da neblina Se desdobrava sereno Na majestosa campina
O cheiro de várias flores Aromatizava os prados O coqueiro erguia a fronde Pelos ventos perfumados Que vinham lá dos confins Dos campestres matizados
Os grandes jacarandás Faziam grossas colunas Os sabiás procuravam Alguns fragaços nas dunas Para a construção dos ninhos Na copa das cabiúnas
Eram quase sete horas ... Depois de ter despertado Na grande imaginação Do que havia sonhado Senti saudades do berço Que fui nascido e criado
Este sonho eu nunca mais Afastei do pensamento Fiz dentro do coração Um forte revestimento Pra suportar a saudade Que chega a todo momento
Todo sonho é ilusão Posso afirmar seriamente Dormindo se sonha, às vezes, Noutro lugar diferente Acho que seja por causa Do pensamento da gente.
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MOMENTOS MATUTINOS
Nas noites caliginosas As estrelas luminosas Pelas grimpas montanhosas Derramam luz soberana As florzinhas da paisagem Dormem por entre a ramagem Talvez sonhando a imagem Dos sorrisos de Diana
Os pirilampos pequenos Vindos de outros terrenos Pousam, sutis e serenos Pelos estrumes da terra Os perfumados vapores Passam roçando os verdores Levando os leves rumores Das águas brandas da serra
A Lua, alta e feliz Linda mãe dos bugaris Derrama raios sutis Por toda extensão da selva Dos lírios desabrochados Brancos e imaculados, Os seus perfumes sagrados A brisa bafeja e leva
Dentro da floresta densa A vegetação imensa Parece ficar suspensa Nesse ditoso momento As carnaúbas rendadas Criadas lá nas chapadas Abrem as frondes copadas Para a passagem do vento
A brisa sopra dolente Por entre a flora virente O céu de cor transparente Azul, sem uma só mancha Branca neve matutina Envolve a vasta campina Toalha de gaze fina Que o dia rasga e desmancha
As corujas traiçoeiras Com suas asas maneiras Passam nos ares, ligeiras Para o grotilhão enorme Foge o tenebroso véu Na aroeira, o xexéu Olhando as cores do céu Desperta a mata que dorme
Para as bandas do levante Lindo clarão rutilante Vem-se alargando, brilhante Cheio de glória e encanto A neve se desenrola E o beija-flor, por esmola Em cada fresca corola Deposita um beijo santo
Dos floridos vegetais Os orvalhos matinais Como gotas de cristais Se desprendem tremulantes Um traço de fina luz Aquece os verdes bambus Dos altos cumes azuis Das cordilheiras distantes
A borboleta amarela Passa juntinho à janela Vai pousar, serena e bela Num lindo caramanchão O sabiá, lá da mata No ingazeiro desata A nota suave e grata De sonorosa canção
Cantam na serra os pastores Os tempos de seus amores Sentindo os brandos calores Dos raios do sol nascente E a Natureza selvagem Estende a sua ramagem Como rendendo homenagem A um Deus onipotente.
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ÁRVORE MORTA
Foste tu, velha braúna A divisão da paisagem A gigantesca coluna Da Natureza selvagem Abrias tua ramagem Pelas tardes nevoentas As borrascas violentas Nunca te causaram danos Antes de trezentos anos Te açoitaram mil tormentas
Respeitaram-te os machados Das primeiras gerações Teus grossos galhos crispados Desafiaram tufões Venceste mil furacões Desde os tempos de Cabral Atalaia colossal Soberbo gigante antigo Talvez até deste abrigo Aos filhos de Portugal
Por certo ouviste as cantigas Das tribos depois da guerra Filha das lendas antigas, Rebento santo da Terra Antes, ó virgem da serra, Dos danos daquele raio Pelo teu leve desmaio Colhias na fronde tua Lindos sorrisos da Lua Nos noites do mês de maio
Estes teus grandes madeiros Há uns cem anos passados Se sacudiam maneiros Cheios de viço, copados Nos teus ramos delicados Nas horas do arrebol O pequeno rouxinol Cantava com mais ternura Colhendo a doce frescura Das brisas do pôr-do-sol
Já tens um lado comido Da era que foi ingrata Este teu galho pendido Relembra longínqua data Em teu pé uma cascata Se despenhava fremente Teu tronco, velho e doente Pelo cupim estragado Foi muitas vezes lavado Pela fragosa corrente
Hoje, só tens a carcaça Sobre a estrada caída Uma pessoa que passa Medita e sai comovida Uma parte apodrecida Onde outrora os sabiás Voando dos laranjais Vinham pousar cantando E hoje passam voando Se assustam, não pousam mais
Das plantas foi a mais bela Que entre a flora viveu Quem sabe na vida dela Quantos janeiros venceu ... Depois murchou e morreu Ficou dos ramos despida Para o poente estendida Sem verdura e sem beleza Talvez que nessa tristeza Sinta saudades da vida.
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OS DOIS COQUEIROS
Testemunhas seculares Do outro lado do rio Rumor das brisas lunares Nas calmas noites de estio Foram vigias de feras Venceram eras e eras Se tornaram centenários Os seus bulícios tristonhos Tinham a doçura dos sonhos De mil poemas lendários
Com prazeres recebiam O pequeno rouxinol Eram os primeiros que viam A face alegre do sol Sentiram as mesmas mágoas Beberam das mesmas águas Queimados do mesmo pó Colheram o mesmo sereno Viveram num só terreno Nasceram num dia só
Com todo viço aumentaram As duas plantas vizinhas Em pouco tempo chegaram Ao mundo das andorinhas Neve, chuva e cerração Frio, sereno e verão Nada disso os atingiram Vencedores das idades Nem as próprias tempestades Tempo algum lhes aluíram
Nas brisas que perpassavam Brandas ou mais violentas Eles os dois conversavam Numas frases barulhentas Receberam temporais, Deslocamentos fatais Por brusco arrojo dos ventos Viveram nestes combates Lutando contra os embates Da força dos elementos
Assim aqueles coqueiros Cheios de viço e enganos Se tornaram dois guerreiros Foram lutar contra os anos Um ao outro em homenagem Nos bafejos da aragem Estendiam a palha sua Cada fronde, verde e bela Conservava uma parcela Da luz serena da Lua
Suas palhas sussurrantes Continham graça e beleza Dois monstruosos gigantes Criados da Natureza Desde a fronde às raízes Todas suas cicatrizes Foram profundas feridas Cada marca, uma história Uma medalha, uma glória De cem batalhas vencidas
Em certos dias marcados Choveu torrencialmente Foram os dois abraçados Por poderosa corrente Um rodava, outro pendia A água se remexia Numa fúria de dragão O mais fraco, já vencido, Num arrojo desmedido Caiu sem ter salvação
Ficou o outro coqueiro Em meio à corrente, em pé Como fosse um guerreiro Sem esperança e sem fé Se balançava, tremia Tombava, depois se erguia Entre o furor do perigo E a morrer se dispunha Como a maior testemunha Da morte de seu amigo
No horroroso fragor Já se mostrava pendido Sentiu faltar-lhe o vigor Foi ficando esmorecido A água, em borbotão Fazia revolução Da superfície à areia Caiu no mesmo momento Ao impulso violento Dos solavancos da cheia
As grandes vagas caudais Desciam ligeiramente Sem ter resistência mais Se lançou sobre a corrente O aguaceiro o levou E junto ao outro o deixou Por um ligeiro desvio Ficando os dois encostados Onde estão sepultados Do outro lado do rio.
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MEU LUGAREJO
Meu recanto pequenino De planalto e de baixio Onde eu brincava em menino Pelos barrancos do rio Gigantescos braunais, Meus soberbos taquarais Cheios de viço e vigor Belas roseiras nevadas Diariamente abanadas Das asas do beija-flor
A terra da catingueira Criada na penedia Onde a ave prazenteira Canta a chegada do dia Planalto, ribeiro, prado Onde até o próprio gado Parece ter mais prazer Terreno das andorinhas Onde arrulham mil rolinhas Quando começa a chover
A borboleta ligeira Que desce do verde monte Passa voando maneira Roçando as águas da fonte As aragens dos campestres Pelas florzinhas silvestres Atravessam sem alarde Quando o sol se debruça A Natureza soluça Nas sombras do véu da tarde
Terreno em que os sabiás Cantam com mais queixumes Belas noites de cristais Cravadas de vaga-lumes Meus mangueirais magníficos Por onde os ventos pacíficos Atravessam mansamente Verdes matas perfumadas Nas lindas tardes toldadas Das cinzas do sol poente
Esvoaçam, preguiçosas, As abelhas pequeninas Tirando néctar das rosas Das regiões campesinas Os colibris multicores Pelos serenos verdores Perpassam com sutileza O orvalho cristalino Lembra o pranto divino Dos olhos da Natureza
Palmeiras que o rouxinol Canta ainda horas inteiras As auras do pôr-do-sol Soluçam nas laranjeiras A pelúcia aveludada De muitas flores bordada Desde o vale até o outeiro Lugar em que cada planta Soluça, sorri e canta Pelos trovões de janeiro
Deslumbra a gente o encanto Das borboletas douradas Pousarem no róscio santo Das manhãs cristalizadas Fingem variadas fitas De fato que são bonitas Porém se fingem mais belas Que a divina Natureza, Por ter-lhes posto a beleza, Deu mais vaidade a elas
Oh, noite de Lua cheia De minha terra querida! Lindas baixadas de areia Princípios da minha vida Lugares de despenhado Onde gozei, descansado Sombra, frescura e carinho Bosque, vale, serrania Lugares onde eu vivia Em busca de passarinho
Os colibris delicados Pelas manhãs de neblina Passam voando vexados Na vastidão da campina Nos frondosos jiquiris Dezenas de bem-te-vis Elevam seus madrigais Lugar que grita o carão Olhando o santo clarão Primeiro que o dia traz
As pequeninas ovelhas Descem buscando o aprisco Colhendo ainda as centelhas Do sol ocultando o disco Seguem pelas mesmas trilhas Como que sejam as filhas Dum pastor que lhes quer bem Recebendo ainda as cores Dos derradeiros rubores Que o céu do oeste tem
Vivia sempre brincando Fosse de noite ou de dia Na alma se apresentando Um mundo de poesia Minhas queridas delícias Aquelas santas primícias Se passaram como um hino Hoje só resta a lembrança Do tempo em que fui criança No meu torrão pequenino. FONTE: http://www.jornaldepoesia.jor.br/jbsiqueira.html |
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